Gata Borralheira

SENTIMENTO PROVINCIAL

DANIEL LIMA - 16/04/2002

-- No meu caso, querida São Paulo, tem um adendo que não pretendia revelar mas não estou resistindo, porque os demais municípios me chamam de metido, de bom-de-boca. Eles metem o pau em São Caetano porque a gente não se dá muito com eles, porque nos isolamos deles, e temos uma queda muito grande por tudo que acontece com você, São Paulo. Gosto de consumir em São Paulo, de me divertir em São Paulo, de falar das coisas de São Paulo. Tudo isso tem uma explicação meus amigos. E vocês vão me dar razão. Nós precisamos exorcizar esse sentimento de província que nos abate a todos em relação a São Paulo e a melhor fórmula para alcançar esse resultado é aproveitar a proximidade física e bandear de vez para São Paulo. Negando o ABC e assumindo São Paulo, eu estabeleço uma relação psicossociológica complexa, mas é uma forma de entregar minha alma a São Paulo, mesmo que o corpo continue no ABC.

-- Minha nossa senhora, meus caros amigos do ABC. Saibam que jamais tinha construído raciocínio tão perfeito para explicar por que São Caetano lança-se tanto em meu território de consumo de produtos, serviços e cultura. Juro que cheguei a pensar que a preferência era meramente materialista e de status, mas pelo visto é muito mais profundo. É uma maneira de dizer para si mesmo que basta um empurrãozinho legal para que eu anexe seu território às minhas fronteiras geográficas. Quem não quer absorver São Caetano?

-- Também não é assim não, São Paulo. Não exagera, porque sou suficientemente orgulhoso e bairrista para não abandonar minha identidade de Município e virar seu apêndice. Consegui a alforria de Santo André há mais de 50 anos e não pretendo transferi-la para você. Os tempos da escravatura político-administrativa já terminaram. Vou continuar esse meu jogo de conveniência porque é exatamente isso que me satisfaz.

-- Estou enganado ou senti um olhar de reprovação de Santo André enquanto São Caetano falava?

-- Você está certíssima São Paulo. Certíssima. E não é para ficar zangado mesmo? Até parece que a história do ABC é um poço de desumanidades, de atrocidades. Que negócio é esse de esconjurar o passado em que São Caetano pertencia a Santo André?

-- E não vai querer negar, Santo André, que foi melhor para mim ter conseguido a emancipação política e administrativa? Será que meu território seria o que é hoje se permanecesse como um bairro de Santo André?

-- Bem, São Caetano, aí é outra história, mas foi a febre emancipacionista, que transformou em sete municípios o que era apenas um, que fragmentou institucionalmente, politicamente e culturalmente o ABC. Não vai querer negar que se fôssemos um Município só não haveria mais possibilidades de as políticas públicas ganharem rumo diferente, de as relações serem permeadas de mais proximidade, de a máquina pública ser menos dispendiosa? Será que não teria valido a pena ter mantido a integridade física, política e administrativa do antigo ABC único, por que assim a gente não seria tão dividido em tudo, a gente não ficaria medindo forças em tudo? Vocês só estão aqui nesta mesa porque eu permiti. Fiz uma lipoaspiração territorial e administrativa e dei luz a vocês todos, menos a São Paulo, é claro!

-- Se me permitem Santo André e São Caetano, não posso deixar de dar uma palavrinha. Acho que a ideia de Município único seria ótima, ótima mesmo, desde que continuasse a se chamar São Bernardo do Campo. Desde que fosse eu a unidade básica.

-- Muito engraçado você, São Bernardo. Muito engraçado. Acho que por questão de direito, de antecedência, de origem, o ABC de um Município apenas deveria se chamar Santo André da Borda do Campo, como era no começo de toda a história, quando eu dava as cartas e jogava de mão. E nem poderia ser diferente, porque mantinha o domínio da região em todas as áreas a partir da chegada das indústrias na esteira da implantação da Estrada de Ferro São Paulo-Railway. Não sei por que inventaram de mexer no que estava certo.

-- Corta essa Santo André, corta essa. Você acha que eu, São Bernardo, Capital Econômica da região, aceitaria estar subordinado a você como bairro, como distrito? Será que você não entendeu que com a chegada da indústria automotiva em minhas terras as relações se alteraram completamente? Antes disso já tinha minha autonomia político-administrativa. O deslocamento do eixo desenvolvimentista da região da Estrada de Ferro para a Via Anchieta pode ter sido uma obra do acaso, porque eu não tinha massa crítica para fazer lobby tão expressivo e essa decisão veio do governo do Estado e do governo federal. Mas o fato é que me beneficiei disso e jamais vou abrir mão dessa vantagem. Ganhei a parada quando o Brasil decidiu crescer pelas estradas, sobre rodas, e não pelos trilhos dos trens. Você descarrilhou a partir daí, Santo André.

-- Me permitam entrar nessa conversa. Também consegui me desvincular de Santo André pelo menos no papel, porque ainda estou à sombra do que acontece com o meu vizinho, e me sinto muito bem. Está certo que sou um abacaxi sem tamanho, que meus problemas sociais são amplos, mas nada melhor do que ser dona do próprio nariz. Sem dizer que Santo André está posando de bonzinho, de democrata, mas sabe muito bem que conseguimos todos nós, eu, São Caetano, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra, nos libertar de seu comando por força de plebiscito popular patrocinado pela legislação. Pela vontade de Santo André, é claro que eu não teria nascido.

-- Estou com Mauá e não abro, porque me desvinculei de São Bernardo e estou bem melhor do que se continuasse sendo bairro.

-- Está certo, Diadema, está certo. Mas você não pode esquecer que legislação é uma coisa, geografia é outra. Emancipada ou não, você está do meu lado, marginalmente do meu lado, e insisto em lembrá-la de que todos os pepinos da minha periferia que lhe faz divisa jogo para você resolver, não é verdade? Não é você que cansa de reclamar que seus índices de criminalidade são contaminados por mim?

-- E vai dizer que não é verdade, respeitada São Paulo? Matam e ferem seus bandidos e jogam no meu espaço, porque é no meu espaço que se encontra o melhor atendimento médico de quem está nas bordas da querida Capital. Aí vem a polícia e contabiliza a desgraça em meu nome. E isso aparece covardemente nas estatísticas.

-- Também não é tanto assim, Diadema. Você sabe muito bem que não é nenhuma anjinha não. Que a bandidagem toma conta de seus núcleos de favelas, que os botecos são incubadoras de assaltantes, que o tráfico de drogas é uma rotina; enfim, que você tem seus próprios marginais porque seus espaços foram ocupados de forma abrupta, sem planejamento urbano, sem infraestrutura de serviços públicos. De uns anos para cá que você está ganhando tudo isso. É ou não é verdade?

-- Estão vendo, meus irmãozinhos do ABC, como São Paulo gosta de tripudiar? Até parece que não sofre dos mesmos males.

-- Sofro sim, não nego, mas é proporcionalmente menor. Temos o contraponto de bolsões de riqueza, enquanto você está atolada em exclusão social. No mesmo dia em que a imprensa faz a cobertura de um crime bárbaro no meu território, tem sempre uma notícia de economia que salva a lavoura. Eu sou assim, Diadema. Sou rica, dinâmica, contraditória, paradoxal. Você não, Diadema. Você é previsível em sua monotonia urbana como um assalto à luz do dia. E tem de recorrer até a uma legislação estranha, que fecha os bares às 11 horas da noite, para tentar reduzir o índice de violência. Eu sou cosmopolita. A violência que me cerca é rarefeita perto dos pontos positivos e da massa de riqueza que detenho.

-- Diadema, você tem que se conformar de ser o recheio dos sanduíches de problemas que eu de um lado e São Paulo de outro não conseguimos resolver. Ou você se esqueceu, ou está sendo diplomática comigo só para me agradar, que somos vizinhos em circunstâncias semelhantes à sua vizinhança com São Paulo? Dê uma reparadinha no mapa e veja, com cuidado, que meus bairros problemáticos, não todos é verdade, mas boa parte deles, se misturam com suas entranhas geográficas.

-- Tinha você, São Bernardo, que me cutucar para duplicar meus problemas e insinuar essa abordagem linguística de segundas intenções? Que negócio de entranhas é esse? Que modos de falar com uma dama? É lógico que sei, sinto na própria pele, que também a sua periferia deságua em meu território, muitas vezes separada apenas pela Imigrantes. Sei que sou a mortadela entre as bandas de pão de São Paulo e você, mas não precisa abusar.

-- É o preço da geografia, você tem de entender. Ou você se esqueceu de que seu marketing de ocupação industrial feito de improviso, mas alardeado com frequência durante o início dos anos 70 e nos anos 80, era a fartura de terras baratas que tanto eu quanto São Paulo não contávamos para abrigar indústrias? Você se esqueceu de que a Imigrantes chegou em seu território para mudar sua história? Você cansou de cantar em prosa e verso que ficava no meio do caminho entre o Planalto e o Porto de Santos e que isso era peso preponderante para absorver os investimentos, não é verdade? Como iria pretender recolher apenas os bons frutos da ocupação industrial? Se você, cá entre nós, tivesse planejado a chegada das empresas, distribuindo melhor os espaços para impedir essa barbaridade que é seu território, onde indústrias e favelas se confundem numa anarquia urbanística e social, há de convir que a situação seria outra. Que a criminalidade não seria tão assustadora.



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